domingo, 4 de dezembro de 2011

Lacuna

Tenho sentido a falta do ar, meus pulmões buscam mais de mim para assegurarem-se vivos. Pelo minuto no qual estive ausente, por esquecer a parte que me cabe no todo cósmico, tenho pagado por dias esse deslize frente aos degraus cada vez mais íngremes. A vontade de reescalar não levaria à salvação, como parece, como é tão impregnado em mim esse sentimento de correr pelo que já me é familiar. Um braço estendido, timidamente, oferecendo que tudo seja o que deveria obviamente ser. E o nada no que tudo se tornou? E as crenças que se desfazem por completo? E meus sentimentos tão verdadeiros, tudo tão sincero! Por que sempre tudo parte de mim? Eu não consigo sentir nada além de amor, um amor profundo e enraizado fluindo de cada hemácia, seu rastro derramado nas paredes dos vasos, vazando pelos órgãos, bombeado por todo o organismo, pulsante, integrando moléculas de DNA, como se não houvesse sido programado. Esse ataque independe de comandos cerebrais, está intrincado ao próprio funcionamento místico dessa máquina orgânica, um corpo a flor da pele, trabalhando para sustentar-se, ainda que espetado em vários sentidos por espinhos microscópicos. A cada movimento, o músculo retraído comprime em suas fibras essas esferas afiadas, promovendo múltiplos cortes, a sensação pungente e desconhecida, cada movimento é interpretado como um passo à concepção idealizada da plena felicidade. É auto-defesa.

Tão próximo estava de ser o que finalmente... E tudo se encaixava, obrigatoriamente deveria dar um passo em falso e não saber mais como caminhar. Como se vivesse em pleno espaço, cercado por constelações e milhões de orbes espaciais, corpos celestes e seres que nunca souberam o que seria uma raça humana. Nesse vazio recheado de possibilidades, na ausência de gravidade, somos livres para flutuarmos como pensamentos. Somos pensamentos, meros instantes energéticos libertos de concepções e contexto, libertos de olhares e sílabas, os gestos, não impedidos, são os mais sinceros e falam todas as línguas. E se todas as estrelas forem, na verdade, algo diferente de estrelas? E se, fora daqui, tudo for diferente do que é aqui? Caso estivéssemos inconscientes seria tudo diferente? Num sonho, num delírio, num êxtase, num coma, nos primeiros instantes antes da morte... qual seria? As mãos se unem finalmente nesse espaço-tempo imutável, que rebaixa tudo com sua magnânima infinidade e enterra em buracos negros toda uma tradição de opiniões e comportamentos. Só nós importamos e o que flui é mágico, o que estava sempre por aqui é o normal e o normal é extraordinário. Eu sempre busquei mais de mim para ser mais para todos, quando ninguém nunca quis mais, ninguém nunca soube a diferença.

Do centro da Terra emanam todos os impulsos cataclismáticos, anunciando, a cada rachadura vagarosa da crosta, a necessidade de emanciparmos nossos sentimentos a outro nível de desprendimento. Antes concentrados em nos desfazermos, amarrando os fios de nossos impulsos cuidadosamente para que não doesse tanto, agora forço-me a consumir meu tempo buscando cada nó para que ele seja desfeito. Olhares de reprovação ainda não se conscientizaram sobre a urgência do planeta em modificar-se, em limpar-se de todo o supérfluo. Sinto no interior de meus ossos o regozijo por estar caminhando sobre essas folhas secas feitas de pele humana já envelhecida e quebradiça. Meus passos as pulverizam em direção a uma nova existência, onde a não gravidade é aqui, onde toda a comunhão de corpos é possível sem que esteja distante. O amontoar de corpos sadios, em transe fascinante por outro corpo vazio, uma união universal indistinta de todos os seres que se se cortaram, arrancando seu sangue e filtrando todo um corpo, bebendo em homenagem a uma renovação hiperbólica. Preciso de tudo além, uma reestruturação excelsa, o amor ocupando cada átomo que me estrutura, que me traduz em matéria, cada átomo repleto das ínfimas partículas plasmáticas constituintes do sentimento. Meu corpo exige mais de mim, mais comunhão, mais vida, mais do ar que respiro.

A boca é por onde entrevejo tudo o que posso conhecer de mais profundo sobre um corpo em seu sentido mais primitivo. Por entre os dentes e sobre a língua estão os primordiais elementos, os dados mais humanos, toda a voracidade dos ancestrais transmutados em apenas um corpo novo. A dor que sinto é ausência pura, o nada se fazendo sentir. O buraco negro da existência, um nada que a tudo consome e tudo engloba. Por vezes não me lembro mais o que era de início e no que me tornei, tantas foram as transformações. Eu só queria muito pouca coisa, na verdade.

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