Andava com a cabeça no mesmo lugar, por ruas a fio, mecanicamente, trocando palavras consigo para evitar o tédio da distância percorrida múltiplas vezes. Apesar da invigilância aparente, notava cada rosto que atravessasse seu caminho, reparando o canto do olho de cada pessoa, a fonte de todos os seus sentimentos, a fonte da realidade. Movia-se em uma velocidade normal, o fim do dia não reservava nenhuma surpresa. Era dormir e acordar para recomeçar nessa escada horizontal e enrolada no próprio eixo derrubado. A caminhada, a caminhada pela mesma distância percorrida múltiplas vezes. Seu canto do olho mostrava o que era real em si? Mas ninguém reparava.
A observação não era, porém, gratuita. Buscava algo em alguém que não existia. Nenhuma das duas coisas existiam. Apenas a ausência. Quando acordara na pele, não soubera o que fazer dessas sensações que se assoberbavam continuamente e sem explicação. Não teve escolha, a não ser rogar a um Deus que se prontificasse a responder seus anseios mais íntimos, posto que nenhum ser humano o seria capaz. Mas nunca soube entender a resposta, supondo que ela havia sido enviada.
Mas ao se afogar no primeiro pingo d'água, sentiu todo o seu corpo transportar-se para absorver aquela gota e mais cada uma que se aproximava, devagar, depois rápido. As moléculas vindas do céu se misturando com as suas eram como um sopro de vida da ponta da língua de Deus para todo um humano que não tinha mais a certeza de haver sido realmente um dia diferente de um bando de órgãos involuntários. Elevando o rosto, a pouca luz ainda ferindo os olhos acostumados a dormir, recebe, pela boca, limpando tudo por dentro, a água da chuva, impensada, apenas dos recônditos jamais alcançados por mãos humanas, uma floresta virgem.
Enquanto caminha em suspensão, o amor que brota da ponta dos dedos evola-se para fazer do mundo um lugar um pouco melhor e derrete qualquer palavra viscosa que, naquele momento poderia ser cogitada. Apesar de palavras imundas, as ações cristalinas e sinceras somam-se por cima delas e as inutilizam. Prefiro palavras hediondas a ações dissimuladas. O amor invisível é o mais precioso e quente. Ele queima todo um coração que absorve essa água, pulsando a essência da vida por artérias cansadas de serem subestimadas. O calor que invade todo o corpo, desesperado por transferir esse calor, ansioso por achar o recipiente de si. Um corpo que caminha sobre si dia após dia, vencendo-se e chorando por razões múltiplas, sempre achando algo que o faça mais necessitado desse calor que é inexistente por si só.
O desejo de união pulsa, resguardado no fundo de mitocôndrias, um elo partido, dos quais fragmentos se espalham por cada organela, buscando uma a outra, introjeta no inconsciente do corpo a falta inexplicável que suga o ar dos alvéolos. Células instintivas, incompletas desde a criação dos tempos, em seu DNA está espiralada a ausência que é a constituição do ser humano. Mas como se me fosse íntimo, percebo uma leve alteração química quando estou na presença do que, ainda que seja mera representação, remeta-me a completude. O esforço por livrar-me da impressão equipara-se a exigir que o fígado abandone sua função exócrina, em meu corpo firmo tudo o que me suspende quando não suporto mais viver entre meus iguais.
Mas, com a mão fechada, guardando riscos de água, chega ao final da caminhada não antes de atravessar a rua. Um pequeno olhar de precaução para ver, em sua direção, o ônibus que ignorava qualquer exceção. Em sua frente, contrastando com a escuridão do final do dia, muito claramente, sua frente assemelhava-se ao que fosse uma passagem para onde a compreensão é absoluta. Irresistíveis milhões de impulsos são gerados em milésimos de segundo quase que automaticamente movendo o corpo em direção a essa galeria de auto-satisfação. O cansaço se apoderando das pernas rapidamente, turvando os sentidos mais externos, uma euforia quimicamente arquitetada para isolar-se de qualquer medo consciente e planejamento quanto ao futuro. Apenas se busca sanar a dor mais pungente, mais verdadeiramente enraizada.
Contudo, o portal já havia passado e se fechado. Era seguro completar a caminhada como em qualquer dia. E, antes que pudesse concluir seus pensamentos, encontrou.