sábado, 21 de janeiro de 2012

Bipartido

Quando fui dormir, não foi porque necessitava, mas porque estava cansado um pouco além da conta de tudo ser um ciclo. E minha voz não era tão ouvida quanto falada, atendendo a requerimentos. Sentia em cada pedaço as humilhações desse tempo, os erros, as enganações. Toda uma imaginação gerada por dentro, mas ao estímulo externo, algo incrível. Eu nunca imaginei que esse processo fosse real. E um pouco cansado também de estar espremido tanto emocionalmente, mas agora também fisicamente. O esforço que demanda é infinito, mas me fiz inconstante ao ponto de me ferir no mesmo espinho diversas vezes. E a mesma pergunta. Toda essa situação me fazendo extrair o pior de mim mesmo e olhá-lo, quando o melhor se dissolve e mais abundante. Se assim é, por que permanecer incólume?

Eu morri naquela noite.

É que quando acordei e olhei-me no espelho, não me reconheci. Era idealizado, e a cada imagem que eu percebia em meu caminho, sabia todas as reentrâncias musculares que as compunha, eu era em meu cérebro cada rosto que aparecia. De repente, transformei-me em diferentes homens, as mais diversas mulheres, crianças inocentes, idosos em mínimo número. Eu era agora a verdadeira metamorfose ambulante e palpável. A felicidade nunca me pareceu tão possível. Corri sem medo pelas ruas, os braços abertos, tomando todos os raios solares de uma vez junto com a água da chuva, o vento gelado e a sensação de mormaço não me abafava mais. Aquele dia proliferou mais do que toda a minha existência.

Ao terminar o dia, nos finais de semana, nas férias eu não sabia mais quem era, tantas eram as experiências que conseguia criar. Percorri uma infinidade de corpos em tantas vivências. Eu soube o que eram todas as sensações físicas do universo. Sabia o que sentiam todas as multiplicidades, eu era um arquivo vivo de sentimentos e sensações. Eu estava quase completo. E nessas andanças, percebi como fazer para aumentar o tempo que me dedicaria a saciar meu novo hedonismo. Saí às ruas exercendo toda a beleza capaz de projetar e a mim vieram tão facilmente os produtos dessa vida pragmática, era tão simples como os efeitos mundanos eram equacionáveis e seus resultados previsíveis, calculáveis, sistemáticos.

Livre de mais essa tribulação, a necessidade material, eu passei a esbanjar o meu tempo entre saciar-me e conhecer o novo que, em breve, não mais seria novo. A incrível capacidade de adaptação do ser humano por vezes é traiçoeira, pois nos motiva sempre a uma insatisfação, mesmo quando não há mais atrás de que ir. Mas as possibilidades para mim eram agora infinitas e poucos anos não poderiam ter esgotado tudo o que eu tinha a vivenciar. Viciei até a última matéria orgânica de que sou composto em prazer e fiquei cego, atordoado pela espuma vigorosa.

Mas por ter me esquecido da dor, passei a ocupar, à noite, na margem da sombra alheia, formatos que sujeitassem o avesso de meu idealizado patamar e forcei-me a ser por um momento esses formatos, não apenas igualando-os ao que havia feito durante esse tempo de milagres. E a cada palavra, a cada olhar, eu aguçava minha mente para entender algo que eu mesmo fizera e havia obliterado, como se tivesse tal direito. Era como se meus braços e pernas não mais existissem e eu me movesse graças a aparatos tecnológicos que implantei nas cavidades sangrentas. Eu não existia mais sem eles, não podia desvencilhar-me da vida da qual era parte simbiótica.

Mas, depois de alguns dias, eu não sabia mais o que fazer com o prazer, ele não mais me instigava. Eu fui até o espelho e o que vi foi inexplicável. As memórias abafadas de minha morte me diziam agora claramente, como a imagem bela no espelho do que eu era na noite em que fechei os olhos para sempre. Naquela noite, sonhei com a imagem do homem que acordei sendo. Mas e antes? Eu não conseguia compor os traços até quando os vi no espelho. Eu quis ser aquilo e não conseguia formá-lo. Eu não tinha o direito de ser eu mesmo novamente.

O que fazer quando já se tem do tudo e do nada? Foi quando não deixei meu quarto luxuoso por uma dia inteiro. Procurei por fotografias minhas, mas tudo relacionado a mim enquanto vivia no singular havia desaparecido, perdera-se no tempo em que me mantive suspenso. Procurei pela internet, a todo o momento alguém queria parecer se importar com a minha repentina ausência, mas ignorei a tudo, eu apenas fixei meu pensamento em uma época longínqua quando nenhuma daquelas pessoas eram reais.

Por senhas e páginas antigas, pessoas e eventos submersos, ao final do meu suspiro, deparei-me com uma imagem que me deu um sono profundo. Minhas emoções atingiram um nível que eu até então desconhecia e perceber-me ausente de alguma sensação condensou minha ainda incompletude. Eu traí a mim mesmo na suposição de estar acima do universo. Cambaleei até a cama e adormeci.

Sempre ao espelho, como se quisesse me certificar do que eu era. Eu sabia que havia recobrado o eu primogênito. Havia uma certa opinião de mim mesmo neste momento tão mais distanciada. Corri à rua, estava um dia fortíssimo, sentei-me perto da praia e observei por um dia inteiro esse mar maravilhoso, as pessoas passando a minha volta, vivendo alheias a seus próprios conflitos em nome de serem felizes. Em uma abnegação de si tão sublime e eu me lembrei que da forma como estou nunca fora capaz de realizar tal feito extraordinário e tão reles para qualquer ser humano.

Ao passo que a noite se chegava, consegui encontrar-me, não sei se no mesmo dia, com alguma boca, mas desta vez uma pessoa inteira. E o sentimento conjunto, passando pela ponta dos dedos, envolvendo cada movimento não-planejado, afogando todos os sons a volta, em um contínuo de palavras há sempre entaladas. Como em uma explosão nuclear, sem nenhuma esperança e premeditação, o tempo em espirais intensas, naqueles segundos, tudo congelado. A não-necessidade de qualquer pensamento, um alívio de poucos instantes, como a formulção da primeira molécula de uma gota d’água que em breve cairá em um rio que desaguará em um oceano. Ao conseguir tornar físico anos de imersão abstrata, meu corpo finalmente conseguiu o descanço que tanto almejava e julgava haver conseguido.

Não se sabe ter terminado algo até que se tenha de fato. E como saber se desta vez foi, de fato, concluído? Eu adormeci novamente. Eu não estava sozinho, como achei que estaria ao final desta história.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

- Sim, está tudo bem.
- Tenho observado algumas mudanças, realmente.
- Eu não consigo mais ficar parado. Algo se move dentro de mim e me puxa. Eu contenho um pouco, mas parece que tem uma parte de vontade própria.
- A vontade é apenas sua.
- Eu vivo em comunhão com meu corpo agora totalmente.
- O corpo não é nada. Um invólucro pesado e falho, me enoja.
- Não! Ele é substância de vida feita real, são as emoções palpáveis! O corpo é vontade visível, são pensamentos materializados, a beleza da vida ambulante, a prova da divindade consciente!
- O consciente é a mente. O corpo sem fluido plasmático o que é? Volta aos vermes mais imperfeitos ainda.
- Ele é o fluido tangível. Eu não consigo mais viver ignorando a mágica detrás de tudo isso.
- Mas acho que para você é um avanço. Você sempre viveu com opiniões muito próximas às minhas.
- Estou aprendendo a enxergar tudo. Ainda não me inaugurei.
- Outro corpo não teria feito você chegar até aqui dessa forma. Acho que foi feito o melhor para você.
- Sim. Eu precisava disso. Sei a razão de ter pedido que fosse assim. Entendo mais, mas ainda tenho muitas perguntas.
- Eu não tenho as respostas.
- Mas sabe minhas dúvidas.
- Sei.
- Como posso seguir ainda com as pedras prendendo a minha atenção?
- Se fosse para descobrirmos todas as respostas de uma vez não estaríamos nem aqui vivendo, nem tendo esta conversa, nem nada.
- Entendo. Sinto como se meus pés se movessem lentamente na direção certa, mas cada passo ainda muito vagaroso. Eu tenho conseguido, porém, me aceitar bem-sucedido.
- De fato. Um dia direi tudo o que sinto.
- Você sente...
- Sinto uma infinidade, a pureza dos sentimentos não pertence ao corpo, a essência, o princípio do sentir é extra-corpóreo. Sem isso, você se alagaria em percepções, o real você entraria em êxtase beatífico.
- O êxtase é sempre algo tão momentâneo...
- O do corpo sim.
- Mas tenho algum medo ainda. Posso revirar-me no nada ainda por centênios de minha vida. Sinto como se estivesse placidamente estóico, alheio a contagem dos segundos. E mantê-los é todo o alvo de minhas divagações.
- Todo o tempo interior é precioso. No final, apenas se tem a si mesmo.
- E todo o universo?
- Sai de dentro do meio de nossa cabeça.
- Estou começando a perceber o que me cerca. A força magnética que me mantém. Fico atento a cada rasgar do ar próximo a mim. Temo causar estranhamentos, mas minha intenção é apenas ser mais completo, é trazer para perto de mim sem palavras.
- Um primeiro passo. Mas o concreto é onde está agora.
- Sim. Me perco dessa noção com frequência.
- As obviedades das quais surgem seus questionamentos não são lugar-comum. Quando for só mais um não mais estará em corpo que agora você se apresenta.
- Perderei a consciência?
- Quando ela já estiver entranhada sim. Pode ser que não seja mais necessária em forma tão aguda, tão perfurante.
- E do que me freia tudo isso?
- De erros.
- Não é disso que vem os acertos?
- Para que errar onde sabe-se que é errado? Não há mérito.
- Eu me sinto algo a parte.
- Você é.
- E a compensação deveria ser sublime.
- Ninguém está aqui para ser recompensado com frivolidades. O cerne do sentimento não vem da busca, ele apenas vem. Você pode buscar, mas encontrará o que já sabe.
- Sinto que é importante para mim.
- Que seja.
- Estou um pouco cansado. A percepção profunda de mim e de todo o significado das escolhas e atitudes cavaram fundo um poço dentro de onde eu nem sabia que existia. Como se toda uma biografia houvesse sido rasgada e entalada na minha garganta.
- E como se sente?
- Diferente.
- Um dia, você já foi assim.
- Eu sei. Voltei então?
- Mas não de uma maneira negativa. Nunca se volta igual idêntico. Volta-se melhorado.
- Voltar mas não completamente. Tudo o que falo remete ao passado, pois é meu constituinte inseparável, eu sei, mas sinto ter deixado uma brecha para futuro desta vez, onde eu não via muita razão de ser. Quando salto de mim, tudo parece muito pequeno, todos ínfimos joguetes, peças de um nada. Receio é ter me modificado ao ponto de não mais aceitar nenhum supérfluo, e nem mesmo o essencial por não saber muito o objetivo real disso tudo. Pode ser que não seja necessário, mas, no entanto, anseio.
- É o mais necessário. É a Lei Maior.
- Pode ser que eu não a saiba.
- Sempre soube. Excelso mestre na arte. E seria impossível que este potencial permanecesse transparente. Há lógicas impossíveis, num mar de erros, é só analisar, tão claro é para mim. Para você não?
- Não.
- Por quê?
- As inverdades tornaram-se verdadeiras por repetição. Apesar de eu saber serem falsas.
- O problema é apenas você. Mas nem sempre foi.
- Aceito isso.
- Não delegar a outrem o que deve aprender primeiro a fazer por si.
- E é tão mais fácil fazer por si.
- É. Mas apesar de não mais concordarmos tanto quanto antes, agora minha satisfação é maior.
- Devia?
- Não sei. Mas nem tudo se explica. Já tenho eu que penso como eu penso.
- Essa conversa poderia continuar para sempre.
- E não começou no infinito passado?
- Desde que eu me lembro.
- E por que precisa acabar agora?
- Em algum momento eu absorvi mais do que conseguia aguentar...
- Nada errado com isso. Tudo quer dizer algo sobre nós. E isso diz algo(s) sobre você.
- Você sabe o que me motivou a transcrever esta parte?
- Sei. Mas nem se falou disso... Ao menos não exatamente. Achei que você fosse me perguntar o que eu achava.
- Não, eu já entendi no decorrer. Foi uma ideia tola. Não poderia ser de outro modo.
- Não desta vez.
- Nos primórdios dos tempos, tudo já havia sido previsto?
- Não! Que ideia incoerente...
- Isso me dá certo alívio. Mas, e sobre as vontades que são irreparáveis? de onde elas brotaram como pensamento embrionário? Quais eram as condições que levaram ao lume dessa ideia?