sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

- Sim, está tudo bem.
- Tenho observado algumas mudanças, realmente.
- Eu não consigo mais ficar parado. Algo se move dentro de mim e me puxa. Eu contenho um pouco, mas parece que tem uma parte de vontade própria.
- A vontade é apenas sua.
- Eu vivo em comunhão com meu corpo agora totalmente.
- O corpo não é nada. Um invólucro pesado e falho, me enoja.
- Não! Ele é substância de vida feita real, são as emoções palpáveis! O corpo é vontade visível, são pensamentos materializados, a beleza da vida ambulante, a prova da divindade consciente!
- O consciente é a mente. O corpo sem fluido plasmático o que é? Volta aos vermes mais imperfeitos ainda.
- Ele é o fluido tangível. Eu não consigo mais viver ignorando a mágica detrás de tudo isso.
- Mas acho que para você é um avanço. Você sempre viveu com opiniões muito próximas às minhas.
- Estou aprendendo a enxergar tudo. Ainda não me inaugurei.
- Outro corpo não teria feito você chegar até aqui dessa forma. Acho que foi feito o melhor para você.
- Sim. Eu precisava disso. Sei a razão de ter pedido que fosse assim. Entendo mais, mas ainda tenho muitas perguntas.
- Eu não tenho as respostas.
- Mas sabe minhas dúvidas.
- Sei.
- Como posso seguir ainda com as pedras prendendo a minha atenção?
- Se fosse para descobrirmos todas as respostas de uma vez não estaríamos nem aqui vivendo, nem tendo esta conversa, nem nada.
- Entendo. Sinto como se meus pés se movessem lentamente na direção certa, mas cada passo ainda muito vagaroso. Eu tenho conseguido, porém, me aceitar bem-sucedido.
- De fato. Um dia direi tudo o que sinto.
- Você sente...
- Sinto uma infinidade, a pureza dos sentimentos não pertence ao corpo, a essência, o princípio do sentir é extra-corpóreo. Sem isso, você se alagaria em percepções, o real você entraria em êxtase beatífico.
- O êxtase é sempre algo tão momentâneo...
- O do corpo sim.
- Mas tenho algum medo ainda. Posso revirar-me no nada ainda por centênios de minha vida. Sinto como se estivesse placidamente estóico, alheio a contagem dos segundos. E mantê-los é todo o alvo de minhas divagações.
- Todo o tempo interior é precioso. No final, apenas se tem a si mesmo.
- E todo o universo?
- Sai de dentro do meio de nossa cabeça.
- Estou começando a perceber o que me cerca. A força magnética que me mantém. Fico atento a cada rasgar do ar próximo a mim. Temo causar estranhamentos, mas minha intenção é apenas ser mais completo, é trazer para perto de mim sem palavras.
- Um primeiro passo. Mas o concreto é onde está agora.
- Sim. Me perco dessa noção com frequência.
- As obviedades das quais surgem seus questionamentos não são lugar-comum. Quando for só mais um não mais estará em corpo que agora você se apresenta.
- Perderei a consciência?
- Quando ela já estiver entranhada sim. Pode ser que não seja mais necessária em forma tão aguda, tão perfurante.
- E do que me freia tudo isso?
- De erros.
- Não é disso que vem os acertos?
- Para que errar onde sabe-se que é errado? Não há mérito.
- Eu me sinto algo a parte.
- Você é.
- E a compensação deveria ser sublime.
- Ninguém está aqui para ser recompensado com frivolidades. O cerne do sentimento não vem da busca, ele apenas vem. Você pode buscar, mas encontrará o que já sabe.
- Sinto que é importante para mim.
- Que seja.
- Estou um pouco cansado. A percepção profunda de mim e de todo o significado das escolhas e atitudes cavaram fundo um poço dentro de onde eu nem sabia que existia. Como se toda uma biografia houvesse sido rasgada e entalada na minha garganta.
- E como se sente?
- Diferente.
- Um dia, você já foi assim.
- Eu sei. Voltei então?
- Mas não de uma maneira negativa. Nunca se volta igual idêntico. Volta-se melhorado.
- Voltar mas não completamente. Tudo o que falo remete ao passado, pois é meu constituinte inseparável, eu sei, mas sinto ter deixado uma brecha para futuro desta vez, onde eu não via muita razão de ser. Quando salto de mim, tudo parece muito pequeno, todos ínfimos joguetes, peças de um nada. Receio é ter me modificado ao ponto de não mais aceitar nenhum supérfluo, e nem mesmo o essencial por não saber muito o objetivo real disso tudo. Pode ser que não seja necessário, mas, no entanto, anseio.
- É o mais necessário. É a Lei Maior.
- Pode ser que eu não a saiba.
- Sempre soube. Excelso mestre na arte. E seria impossível que este potencial permanecesse transparente. Há lógicas impossíveis, num mar de erros, é só analisar, tão claro é para mim. Para você não?
- Não.
- Por quê?
- As inverdades tornaram-se verdadeiras por repetição. Apesar de eu saber serem falsas.
- O problema é apenas você. Mas nem sempre foi.
- Aceito isso.
- Não delegar a outrem o que deve aprender primeiro a fazer por si.
- E é tão mais fácil fazer por si.
- É. Mas apesar de não mais concordarmos tanto quanto antes, agora minha satisfação é maior.
- Devia?
- Não sei. Mas nem tudo se explica. Já tenho eu que penso como eu penso.
- Essa conversa poderia continuar para sempre.
- E não começou no infinito passado?
- Desde que eu me lembro.
- E por que precisa acabar agora?
- Em algum momento eu absorvi mais do que conseguia aguentar...
- Nada errado com isso. Tudo quer dizer algo sobre nós. E isso diz algo(s) sobre você.
- Você sabe o que me motivou a transcrever esta parte?
- Sei. Mas nem se falou disso... Ao menos não exatamente. Achei que você fosse me perguntar o que eu achava.
- Não, eu já entendi no decorrer. Foi uma ideia tola. Não poderia ser de outro modo.
- Não desta vez.
- Nos primórdios dos tempos, tudo já havia sido previsto?
- Não! Que ideia incoerente...
- Isso me dá certo alívio. Mas, e sobre as vontades que são irreparáveis? de onde elas brotaram como pensamento embrionário? Quais eram as condições que levaram ao lume dessa ideia?

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