terça-feira, 22 de maio de 2012

O Ponto Fraco

Um pouco encostado numa árvore repleta, as sombras que ela projetava deixava entrever raios de sol fracos que queimavam de leve apenas a epiderme renovando o cansaço de um dia de intenso desgaste mental. O torpor do sono se apoderando dos músculos já relaxados, a mente divagava sem que se percebesse por campos mais verdes ainda, uma calma apenas incomodada pelo soprar de uma brisa quase imperceptível. Aos seus ouvidos, bem ao longe chegavam sons indefiníveis, então ele não prestou atenção, na verdade não os havia notado ainda. E relaxou, talvez tenha dormido.

A cada hora, porém, o som se definia em contornos sonoros, assemelhando-se a sensação quente, como se algo o provocasse com extremo zelo e vontade de ser notado. Sonhos multicoloridos, adornados na linha do tempo o fazia ignorar que era um ser humano e vivia dentro de si próprio neste constante estado de relaxamento mental e era auto-suficiente. Nas mãos sentia a grama se tornar mais viva e escorria verde-clara de suas mãos. Ainda que insetos chegassem a pousar onde ele repousava, nada havia que o fizesse erguer-se, ele era uma completude. Mas ao longe, menos, mas ainda longe, os sons se repetiam.

Ao abrir os olhos, porque o despertara, tais sons só podiam ser passos, mas sem corrida, sem qualquer ambição que não fosse apenas andar naquela direção. Ali estava algo que não pertencia a todo esse universo mansamente designado por ele e fibras que não houvessem sido tecidas por sua imaginação eram como existir água dentro de um vulcão. O que há que a isso se assemelhe? Ele, porém, fechou os olhos, estes por tanto tempo quanto antes já não permaneciam relaxados e ocasionais miradas na direção do azul infinito eram repletas de esforço hercúleo, mas ratificado.

Decidiu que ele mesmo era o mais importante com o que se preocupar, enquanto estava ocupado em saber-se mais, os passos se alargavam (ou fora o som apenas?) sem que ele sequer notasse e havia se tornado o mestre na arte de desviar-se. Até que a ausência deles despertou seus olhos para o que pudesse estar perdendo, uma vez que todos os mundos não poderiam ser previsíveis a seus comandos e conhecimentos, mas ele não sabia disso. Por julgar-se ciente até do que não se enxerga, quando abriu os olhos, deparou-se com uma torrente de sensações que o fez querer não mais o que sua vida inteira o havia satisfeito além de suas perturbações. Mas o gosto do novo que não estava em sua boca o tornou um ser ausente de si mesmo e ele não sabia viver sem saber o que fazer. E não viveu. Mas isso não era para ser vivido. Isso era alguma coisa que assim foi e, melhor que não tivesse sido, ele não sabia administrar que não fosse como ele sabia que tinha que ser. A faca enfiada no peito, se auto-justificada, é melhor que flores como presente.

Quando os passos se afastaram, um vazio controlável o fez uma reminiscência de alguma coisa ruim antiga, apenas ali enterrada, levantara a cabeça de leve para lembrar que nada no mundo é para ser definitivo. E as lições que havia aprendido o fazia não mais estar perto de alguma árvore. Mão sabia onde estava, na verdade. Era a parte que não entendia, era a parte que lhe havia sido negada, era o que ele buscava, e jamais havia tido. O que julgara seu apenas por seguir descansando dessas tempestades que provocava dentro de si e engolindo toda a tormenta, ele julgava que fosse estar perto de se libertar e o inevitável o completaria com a abertura dos céus e de lá tudo o que ele não havia feito nada para ter e estava acontecendo naquele momento, era isso, era agora! Era o que estava na história que havia escrito, detalhes repetidos em diversos momentos, como uma recompensa múltipla por ter sido além de si mesmo. E ter duvidado de si soava agora tão estúpido, agora que ele via na sua frente o universo inteiro fazendo um sentido cósmico vazio de razão. Ele se bastava.

E o que havia desvirtuado essa certeza? E onde o pé havia se enterrado na areia? E em que momento ele deixara de ser um ser humano? E se suas qualidades o superavam,então por quê? Por que aqueles passos ainda podiam ser ouvidos e ainda eram cheios de significado se nada acordava com sua lógica mais do que provada? E por que a vida era cheia de fel? E o que era que tudo aquilo queria dizer? Não poder tomar as rédeas da situação parecia uma impotência nunca sequer vislumbrada de ser aceita. Há tantas formas de cortar essa falta de autenticidade e adiar ferimentos inocentemente provocados, uma vez mais entrando pelo mesmo caminho já retrilhado a exaustão, até na força essa fraqueza perdura impiedosa. Não há como compreendê-la, talvez não haja como livrar-se dela e o rasgo, essa vontade adormecida emerge novamente enquanto todos dormem tranquilos em seus travesseiros fofíssimos. Ele tem nas mãos e os dedos estão imobilizados, a mão não fecha.

Aquilo, assim, sem sentido o fazia relembrar algo que se esforçara tanto por esquecer. E o havia feito. E como não sabia lidar com o mesmo raio caído duas vezes no mesmo lugar?

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Covardia


Dentre as ventosas pelas quais engole o que lhe falta, serenidade e paz de espírito, tem o costume, esta criatura, de vagar em lodosas superfícies, seu peso monstruoso apartado pelos corpos que repetidamente se atiram a seus pés em admiração forçada, não sabendo de onde vem. Tudo canalizado pela abjeta forma amorfa, desfigurada em sua essência, a boca torta pingando dentes sem funcionalidade, sugando a pureza e jogando todo o erro de sua existência, frustradamente tentando justificar-se estar neste planeta. A massa decomposta se arrasta e sua carcaça putrefata vai emitindo tentáculos que se prendem às pernas de quem passa, uma suave simulação de espirros doces atraem quem tenha buracos em suas almas, à busca de conforto, inocentes por desenvolverem seus sentimentos mais acolchoados, a besta selvagem lambuza com sua gosma corpórea fétida qualquer um que esteja alienado de si. Por ela se matam, por ela se privam, por ela se confundem. A enorme covardia do ignóbil enviado pelo mais invejoso dos deuses sobrepõe-se ao asqueroso simples fato de esse reles lixo tóxico respirar.

Mestre em dissimular-se, como líquido que se encaixa em qualquer recipiente, se alarga e ocupa as faltas de seus hospedeiros, dando-lhes o conforto tão sonhado, eles se sentem um só com o pusilânime parasita, seus olhos retorcidos, como fendas em meio ao corpo repugnante, uma visão de horror do centro-vivo de uma alma deturpada e corrompida por suas fraquezas maximizadas e egoístas. Embalados em sono profundo, ausentes do asco que suas vidas se tornaram em comunhão com tal aberração incoerente, um fruto bichado e merecedor de todo o escárnio que lhe sobrevier, odiar tal fonte de infelicidades é o perdão merecido pelo mais alto escalão da santidade. Paradoxal citar beleza em mesma linha de pensamento que a escória do universo. E drenando as almas muito vagarosamente, inebriando suas vítimas com seu falseamento que é a razão de continuar a existir, o vírus começa a transmutar-se, livrando-se de seu alimento, pisando mais aliviadamente e enganando-se de que é algo melhor do que fora, como se tal evento possível fosse, ignorando que é intrínseco a sua nojeira vital que sofra a cada vez que respira, uma justa punição por roubar o ar do mundo, tão abjeto pedaço de engano.

E houve quem se desse conta de que era impossível ser humano aquele acúmulo de frustrações e palavras calculadas, impostadas em um discurso polido e neutro, era impossível que corresse sangue quente naquela tentativa de modelo de virtudes, naquele arremedo de gente, tão artificializadas eram todas as suas atitudes, tão inconsistentes eram suas frases, tão vazios e fracos eram seus movimentos. A estagnação aparente condenava o pantanoso ser abissal a julgar-se capaz de definir não relativizar situações e fatos, por estar acima do mundo, quando jamais havia caminhado metros além de seu ponto de partida e após tantos séculos de existência era o mesmo infantiloide débil-mental que sempre fora, imaturidade em um corpo tão incapaz de ser humano, tão falho e limitado, tão privado e tão bem-disfarçado. A consciência que inflava suas vítimas as pulverizavam ódio e o histórico de finais catastróficos não era mais nenhuma surpresa, agora sim, era mais do que justificável e pouco havia sido o que lhe sobreviera. Antes houvesse cessado de vez que tal traste permanecesse a caça de pobres coitados.

E conduz-me ao centro de mim, reavaliar-me por meu próprio mérito a realidade. Jamais considerar-me com a superficialidade pseudo-conflituosa característica dos inertes em auto-comiseração contemplativa, dos submissos a vontade alheia, dos derrotados no âmago de si. Eu desmembrei a besta aleijada, retirando cada pedaço de sua nojenta carapaça e grudando ao meu próprio corpo para que o nojo de mim mesmo próximo a qualquer fato que me lembrasse esse imenso e profundo buraco me enchesse do ódio necessário para querer fazer a morte parecer um alívio bendito. Não mais palavras vazias e falsidade teórica. Não mais cenários fantasticamente coloridos, pintados com tanto talento por mãos reticentes e hesitantes. Eu enfio a mão na carne e esbaldo meus dedos em sangue pulsante e pedaços de matéria humana, o clímax do ser orgânico. Cuspo nesse amalgamado de transparências holográficas recheadas de utopias pueris e etiqueta burguesa. A moderação patológica guiada por uma crença em um auto-valor soberbo auto-infligido e invisível constitui o cerne de um vendaval de mentiras, como uma fortaleza de vidro. A armadilha perfeita.