Quando fui dormir, não foi porque necessitava, mas porque estava cansado um pouco além da conta de tudo ser um ciclo. E minha voz não era tão ouvida quanto falada, atendendo a requerimentos. Sentia em cada pedaço as humilhações desse tempo, os erros, as enganações. Toda uma imaginação gerada por dentro, mas ao estímulo externo, algo incrível. Eu nunca imaginei que esse processo fosse real. E um pouco cansado também de estar espremido tanto emocionalmente, mas agora também fisicamente. O esforço que demanda é infinito, mas me fiz inconstante ao ponto de me ferir no mesmo espinho diversas vezes. E a mesma pergunta. Toda essa situação me fazendo extrair o pior de mim mesmo e olhá-lo, quando o melhor se dissolve e mais abundante. Se assim é, por que permanecer incólume?
Eu morri naquela noite.
É que quando acordei e olhei-me no espelho, não me reconheci. Era idealizado, e a cada imagem que eu percebia em meu caminho, sabia todas as reentrâncias musculares que as compunha, eu era em meu cérebro cada rosto que aparecia. De repente, transformei-me em diferentes homens, as mais diversas mulheres, crianças inocentes, idosos em mínimo número. Eu era agora a verdadeira metamorfose ambulante e palpável. A felicidade nunca me pareceu tão possível. Corri sem medo pelas ruas, os braços abertos, tomando todos os raios solares de uma vez junto com a água da chuva, o vento gelado e a sensação de mormaço não me abafava mais. Aquele dia proliferou mais do que toda a minha existência.
Ao terminar o dia, nos finais de semana, nas férias eu não sabia mais quem era, tantas eram as experiências que conseguia criar. Percorri uma infinidade de corpos em tantas vivências. Eu soube o que eram todas as sensações físicas do universo. Sabia o que sentiam todas as multiplicidades, eu era um arquivo vivo de sentimentos e sensações. Eu estava quase completo. E nessas andanças, percebi como fazer para aumentar o tempo que me dedicaria a saciar meu novo hedonismo. Saí às ruas exercendo toda a beleza capaz de projetar e a mim vieram tão facilmente os produtos dessa vida pragmática, era tão simples como os efeitos mundanos eram equacionáveis e seus resultados previsíveis, calculáveis, sistemáticos.
Livre de mais essa tribulação, a necessidade material, eu passei a esbanjar o meu tempo entre saciar-me e conhecer o novo que, em breve, não mais seria novo. A incrível capacidade de adaptação do ser humano por vezes é traiçoeira, pois nos motiva sempre a uma insatisfação, mesmo quando não há mais atrás de que ir. Mas as possibilidades para mim eram agora infinitas e poucos anos não poderiam ter esgotado tudo o que eu tinha a vivenciar. Viciei até a última matéria orgânica de que sou composto em prazer e fiquei cego, atordoado pela espuma vigorosa.
Mas por ter me esquecido da dor, passei a ocupar, à noite, na margem da sombra alheia, formatos que sujeitassem o avesso de meu idealizado patamar e forcei-me a ser por um momento esses formatos, não apenas igualando-os ao que havia feito durante esse tempo de milagres. E a cada palavra, a cada olhar, eu aguçava minha mente para entender algo que eu mesmo fizera e havia obliterado, como se tivesse tal direito. Era como se meus braços e pernas não mais existissem e eu me movesse graças a aparatos tecnológicos que implantei nas cavidades sangrentas. Eu não existia mais sem eles, não podia desvencilhar-me da vida da qual era parte simbiótica.
Mas, depois de alguns dias, eu não sabia mais o que fazer com o prazer, ele não mais me instigava. Eu fui até o espelho e o que vi foi inexplicável. As memórias abafadas de minha morte me diziam agora claramente, como a imagem bela no espelho do que eu era na noite em que fechei os olhos para sempre. Naquela noite, sonhei com a imagem do homem que acordei sendo. Mas e antes? Eu não conseguia compor os traços até quando os vi no espelho. Eu quis ser aquilo e não conseguia formá-lo. Eu não tinha o direito de ser eu mesmo novamente.
O que fazer quando já se tem do tudo e do nada? Foi quando não deixei meu quarto luxuoso por uma dia inteiro. Procurei por fotografias minhas, mas tudo relacionado a mim enquanto vivia no singular havia desaparecido, perdera-se no tempo em que me mantive suspenso. Procurei pela internet, a todo o momento alguém queria parecer se importar com a minha repentina ausência, mas ignorei a tudo, eu apenas fixei meu pensamento em uma época longínqua quando nenhuma daquelas pessoas eram reais.
Por senhas e páginas antigas, pessoas e eventos submersos, ao final do meu suspiro, deparei-me com uma imagem que me deu um sono profundo. Minhas emoções atingiram um nível que eu até então desconhecia e perceber-me ausente de alguma sensação condensou minha ainda incompletude. Eu traí a mim mesmo na suposição de estar acima do universo. Cambaleei até a cama e adormeci.
Sempre ao espelho, como se quisesse me certificar do que eu era. Eu sabia que havia recobrado o eu primogênito. Havia uma certa opinião de mim mesmo neste momento tão mais distanciada. Corri à rua, estava um dia fortíssimo, sentei-me perto da praia e observei por um dia inteiro esse mar maravilhoso, as pessoas passando a minha volta, vivendo alheias a seus próprios conflitos em nome de serem felizes. Em uma abnegação de si tão sublime e eu me lembrei que da forma como estou nunca fora capaz de realizar tal feito extraordinário e tão reles para qualquer ser humano.
Ao passo que a noite se chegava, consegui encontrar-me, não sei se no mesmo dia, com alguma boca, mas desta vez uma pessoa inteira. E o sentimento conjunto, passando pela ponta dos dedos, envolvendo cada movimento não-planejado, afogando todos os sons a volta, em um contínuo de palavras há sempre entaladas. Como em uma explosão nuclear, sem nenhuma esperança e premeditação, o tempo em espirais intensas, naqueles segundos, tudo congelado. A não-necessidade de qualquer pensamento, um alívio de poucos instantes, como a formulção da primeira molécula de uma gota d’água que em breve cairá em um rio que desaguará em um oceano. Ao conseguir tornar físico anos de imersão abstrata, meu corpo finalmente conseguiu o descanço que tanto almejava e julgava haver conseguido.
Não se sabe ter terminado algo até que se tenha de fato. E como saber se desta vez foi, de fato, concluído? Eu adormeci novamente. Eu não estava sozinho, como achei que estaria ao final desta história.