Não havia maneira de bipartir o que havia nascido unificado. Como se a esgueirar-se por corredores funestos de ácido esfumaçante, uma lâmina de vontade oposta, criada pelo desprendimento de energia vital em fazer adoecer alcançou o cérebro de neurônios finamente interligados em sinapses hiperbólicas. Deliciando-se em passear pelos sulcos que naturalmente impediam as células de se aglutinarem, já que a simbiose não é saudável, promover-se-ia uma ruptura, esfacelando traços de memória. O resquício do sentimento de identificação adormeceu no âmago invisível do inconsciente, onde jamais haveria de ser perturbado, ainda que por si próprio o quisesse. E assim percorreram milênios de olhares antagônicos, um frio entre os dedos das mãos, um constante recompor-se de uma lepra interior em meio a um dia normal... E eu ainda mantive-me no centro de mim, para observar a rotação das infinitas partículas que a minha volta dançavam, ao mover de cada músculo, eu sabia prever todos os passos que se seguiriam, eu sei olhar de dentro para fora de tudo e expelir desejos incontroláveis antes que possam ser dissimulados. Eu sou o avesso do fingimento, eu sou o estupro do ser humano por si próprio.
A pele chamuscada ainda sofre arranhões constantes, a unha finca no sob-a-pele rosado e o sangue discretamente, um sangue cristalino embalsamado de ilusões pueris, esvai-se, como que acompanhando a água salgada, muito semelhante em sua constituição cristalina, um abraçar-se irrevogável, com pedidos de desculpa entre os dentes, as veias na testa querendo explodir involuntariamente, acentuando seu desejo de não mais habitar essa rotina a qual já tem por dentro de seus canalículos mais com esmero fabricados. Eu tentei alcançar o mais íntimo possível, na ânsia de não mais precisar esfolar as pontas dos meus dedos em teclas de computador. A vida inteira que é mais eterna do que eu jamais pude entender parece ter acumulado em minhas costas todas as minhas intermináveis auto-percepções, mas não, não é bem disso que se trata.
Recuperando o fôlego, tentando manter-me além de mim um pouco, para olhar para o lado e não reconhecer o outro lado como uma parte impregnada de mim e minhas emoções e meus transtornos falsamente contornados, e abrir mão de tudo o que me embaça os olhos, acostumados a fecharem-se para um mundo de necessidades fisiológicas e barbáries desviadoras de atenção. Eu corto com uma serra meu braço direito, logo abaixo do ombro, por ter a certeza de poder recolocar em seu lugar um braço idêntico, que vou encontrar no segundo seguinte a dor de perder meu próprio, o que vem é como se fosse o meu próprio e sei que será feito o sacrifício da doação abnegada sem nenhum pesar. E viver com apenas um braço tem sido meu maior desafio até então e não sei mais caminhar, perdi o equilíbrio do corpo inteiro e não sei mais realizar as mais básicas atividades diárias. Olho-me no espelho e sinto um nojo e vergonha de meu auto-sacrifício ingênuo, aprendendo a viver por mim mesmo, dependendo da ajuda alheia, mas ainda assim rechaçando-a. Se eu fosse incapaz de me entregar, seria a solução?
Eu me julguei tão abstracionista, imaculado ao alto, isolado em minha torre ebúrnea, tão mistificado e pulverizado de alegorias que me dificultariam a compreensão, sendo a expressão mais pura e verdadeira do que sinto, a origem do sentimento, meu sangue primordial vazado por vontade própria, como se eu me cortasse de propósito para poder continuar vivendo. Mas ao redor de todo o vidro, das escamas multicoloridas, eu não consegui me mesclar com essa vida mundana e todas as minhas tentativas de ser ordinário me corromperam até a doença algum órgão vital. Após reestruturar-me, despejei o arrependimento de acreditar-me capaz de ser diferente de minha essência que pulsa em paredes suaves de um veludo vermelho-sangue, o aconchego quase como uma colcha de seda em uma cama com trezentas e vinte e cinco almofadas. A proteção a qual confino tudo o que sou realmente me identifica com o utópico do ser humano, o qual agarro com afinco de animal instintivo e não meço palavras, não meço ações, recaio em mágoa profunda e idealizo tudo diferente, como se fosse reconstruir um mundo inteiro apenas pela minha vontade e eu não tenho medo de acreditar que a perfeição (para mim) é real, a essência muda, mas nunca se transforma quando é boa, ela adormece, camufla-se, torna-se receosa e tímida, mas em terreno fértil ela volta a desabrochar. Era dessa água que eu falava uma vez, quando ofereci uma parte de mim lindamente composta e feita concreta. Era dessa água que bebi quando me foi ofertada abundantemente, ainda que involuntariamente, e eu consegui, pela primeira vez em tantos anos, lembrar exatamente como eu havia sido há muito tempo atrás, mas que me dá a impressão que amanhã ele vai recomeçar e nada disso que passou teve valor, era como um meio pingo d’água na eternidade.
Mas agora, ainda um pouco atordoado e acumulando mais pedras enquanto tento caminhar em linha reta, aos poucos estou deixando de me importar novamente. Todo o fracasso e humilhação chegaram a um estatuto que me arrancaram as forças para afugentá-los ou fingir que são fantasias. Eu não me importo. Eu sigo sem dar valor ao que sempre dei e olhando para o nada com a certeza do nada. Querer sempre foi minha fonte maior de frustração. Não quero mais. A qualquer vislumbre de vontade, arrancar do cerne da hipótese sua matriz fundamental e enxergar o real cada vez mais intensamente. Eu quero o real do que posso encostar. Estou exausto.
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Acho que não consegui passar o que queria tão a fundo como estou sentindo. Mas estou sem vontade também de tentar me espremer mais. Como se não houvesse pensado nisso o suficiente, quero tentar seguir. Eu amo este blog, estas paredes pretas e esses pingos brancos, como se fossem uma luz, como se eu fosse todo esse blog e meus textos fossem pequenos focos de luz que saem de mim, tentando me resgatar. Já que ninguém parece conseguir fazê-lo, nem eu mesmo. Só queria saber porque para todos é tão simples, estou desejando coisas horríveis neste momento, apesar de me considerar uma boa pessoa. Vou parar agora, não quero mais sentir isso.